Explorando a História

Eram os últimos anos do século 19. Tudo deveria estar pronto para o que Hobsbawm chamaria de a “Era da Catástrofe”. Henri Becquerel revelava ao mundo o bizarro fenômeno da radioatividade. Röntgen observava surpreso a enigmática radiação X. E enquanto a indústria automobilística dava seus primeiros passos, Arrhenius já prenunciava o aquecimento global decorrente da queima de combustíveis fósseis. No Brasil, Floriano Peixoto governava sob rédias curtas a recém República que enfrentava revoltas no Sul e Sudeste e escondia no vasto e pouco conhecido Planalto Central os desmandos de poderosos fazendeiros.

Em muitíssimo maior grau, o interior brasileiro naqueles tempos era bem mais desconhecido que hoje. As regiões litorâneas e pré-litorâneas concentravam a maior parte da movimentação humana, em oposição às pequenas e esparsas vilas de Goiás. Coube ao Marechal de Ferro, como era conhecido Floriano, e a Luiz Cruls dar o pontapé que em parte mudaria esse quadro. Em 1892, nascia a Missão Cruls: uma expedição que adentraria o coração do Brasil para demarcar os limites da nova capital. Mas para além dos objetivos oficiais, o legado dessa missão para o Trilhas Perdidas é outro: o relato de uma grande exploração em tempos antigos.

A mais alta elevação do Brasil em… Goiás?

Por incrível que pareça, um dos mais importantes objetivos pessoais de Cruls era determinar a altura do Pico do Pirineus, nas imediações de Pirenópolis. Acreditava-se, naquela época, que este pico media cerca de 2932m e que, portanto, figurava no topo do ranking das maiores elevações do Brasil. Cruls suspeitava dessa medida. Para ele, havia um erro de mais da metade envolvido e uma ascensão definitiva ao cume era necessária para dar o veredicto. Após 3 dias subindo a elevação, aferiu-se mais ou menos a altura que hoje é aceita: 1385m. Nada mal, apesar de atualmente sabermos existir pontos mais altos dentro do estado.

Pirineus visto de longe...

Pirineus visto de longe…

Sobre as águas da Serra Miguel Inácio

É possível observar o Pirineus a uma razoável distância. Tasso Fragoso, responsável por explorar o vértice Noroeste do Distrito Federal, vira o pico pela primeira vez – a 77 km de lá – desde que saíra de Formosa. Antes, porém, percorrera longitudinalmente boa parte da base das Serras do Maranhão até alcançar o Rio do Sal, Rio Monteiro e o Rio Verde. Aliás, sobre quase todos esses rios e seus afluentes, Fragoso é categórico em afirmar o péssimo gosto das águas. O Rio do Sal, por exemplo, “é quase intragável, tão salgada se apresenta ao paladar”. Em outros casos, como no Rêgo D’Água, a equipe era forçada a misturar açúcar na água para diminuir a repugnância a ela. A pior água, no entanto, era do Rio Verde:

“A sua água é a pior de todas as que provamos neste reconhecimento. Além de extraordinariamente desagradável ao paladar, tem uma propriedade que a destaca de qualquer outra, que fala pior que a do Monteiro: aumenta tanto mais a nossa sede quanto mais a bebemos.”

Serra Miguel Inácio destacada em vermelho

Serra Miguel Inácio destacada em vermelho

Interessante notar no relato da equipe de Fragoso que eles passaram por lugares onde o Trilhas Perdidas passou e ainda tem planos de retornar. É o caso da Serra Miguel Inácio. Ao que tudo indica, Fragoso percorreu o vale do Rio Monteiro, mantendo a serra sempre ao seu lado esquerdo. Mal sabia ele que regredindo o Monteiro até a porção próxima de sua nascente e adentrando a Serra Miguel Inácio, encontraria o que hoje chamamos de Cachoeira da Safira. Ou então que ao cruzar o Córrego Cana-Brava deveriam pensar duas vezes e seguir seu leito até se deparar com uma linda sequência de cachoeiras, o Cânion Cana-Brava. De todo modo, Fragoso acertou em cheio ao elogiar a região, uma das mais belas nos arredores da capital.

Sobre as águas do Paranã

Antes de prosseguir para o vértice Noroeste, a missão Cruls esteve nas bandas de Formosa. Era uma vila importante para quem vinha do litoral nordestino e prosseguia para Vila Boa (Goiás Velho). Mas era também a porta de entrada do Vale do Paranã, cuja serra oeste abriga a enorme Cachoeira do Itiquira, a Água-Fria, a Label e várias outras. Abriga, evidentemente, o Rio Paranã, que recebe a água de todas essas cachoeiras. Sobre o Itiquira, o relatório da comissão antecipou o sentimento dos que hoje a visitam:

“Pretendendo visitar a cachoeira do Itiquira, que nos fora recomendada como digna de se ver, desviamo-nos um tanto do nosso itinerário e no dia 16 acampamos em Itiquira, próximo á cachoeira. O Itiquira é um ribeirão, afluente do rio Paranã; suas águas regam o vale de mesmo nome, mas, na região próximo a Formosa ela forma considerável e importantíssima depressão relativamente à geologia […]

Na manhã do dia 17 seguimos em direção à cachoeira e, depois de um percurso de 3 ou 4 quilômetros [seria a trilha Indaiá-Itiquira dos dias de hoje?], chegamos ao alto da vertente Oeste do vale que lhe fica mais de 500 metros em baixo. Dali em diante o caminho é escarpadíssimo: são tais as dificuldades que os animais têm a vencer que só depois de uma descida de um hora chegamos à base do escarpamento, quase ao nivel do ponto inferior da cachoeira que ainda não avistáramos. Caminhamos mais dois quilômetros para alcançarmos um sítio d’onde descobríssemos o interessante fenômeno […]

É de lindo efeito essa cachoeira; suas águas pouco volumosas, despenham-se, quase em um único salto de 120 metros e se ressaltam ainda uns trinta metros até o fundo do vale. Infelizmente, a basta vegetação que cobre a parte inferior tolhe à vista o seu aspecto geral a certa distância […]”

Imagem do Itiquira retirada do Relatório da Comissão de Exploração

Imagem do Itiquira retirada do Relatório da Comissão de Exploração

É possível que a equipe de Cruls tenha conhecido outras quedas da região, como a Cachoeira do Bandeirinha (provavelmente hoje conhecida como Nacim) ou, em minúscula probabilidade, algumas cachoeiras do Vale de São Pedro (simplesmente porque o relatório menciona a Serra de São Pedro, que fica alguns quilômetros ao norte de Formosa). Mas o que diriam se tivessem visto a sensacional Cachoeira da Água Fria?

Sobre a qualidade das águas do Paranã e seus afluentes, Cruls não dá boas notícias. Alguns leitos de fato possuíam boas águas, potáveis; outros nem tanto. Na verdade, as regiões próximas ao rio eram bem conhecidas por oferecerem boa sorte de doenças, principalmente a malária:

“As regiões banhadas pelo Rio Paranã são muito sujeitas a febres intermitentes e palustres que dão ao lugar uma grande mortandade entre os habitantes ribeirinhos. Os não aclimatados […] são quase sempre vítimas fatais da febre, se durante o inverno cometem a imprudência de empreender viagem por tais paragens.

É principalmente no começos das chuvas e nos veranicos que são mais comuns os casos, e isto explica-se pelos detritos vegetais e animais que as enxurradas revolvem e pelos deixados pelas águas que nas enchentes transbordam dos rios quando voltam ao leito, detritos estes que entrando em decomposição pestilenciam o ar. Quando fomos ao Rio Paranã, nos caminhamentos que fizemos, deslizava-se em seu leito pesadamente uma água barrenta não obstante terem-se passado dias sem chover, e tivemos de atravessar pântanos cuja formação foi devida à enchente do rio e que, sem dúvida, são focos das febres que nestas regiões grassam endemicamente.”

Sobre a Chapada da Contagem

A Chapada da Contagem é a região nortenha do Distrito Federal que antecede as Serras do Maranhão. Localizam-se lá, por exemplo, a Chapada Imperial e o Parque Ecológico Terra-Viva, já bem conhecidos dos brasilienses. Lá também está um conjunto de cachoeiras que fora alvo de uma expedição do Trilhas Perdidas e que chamamos provisoriamente de a “Lenda”. Postaremos um relato futuramente. Mas a dúvida é: por que a chapada tem esse nome?

Região da Contagem destacada em verde.

Região da Contagem destacada em verde.

As áreas que hoje formam o Distrito Federal, antes mesmo de Cruls, já serviam de palco para muitas estradas que interligavam o litoral às vilas interioranas que surgiram no auge da extração de ouro no Brasil. Uma dessas estradas, chamada Estrada Real ou Estrada da Bahia, entrava no DF a leste, passando por Planaltina, Sobradinho, indo até Brazlândia e depois seguindo até a longínqua Vila Boa (Goiás Velho). Acontece que entre Sobradinho e Brazlândia, existia o que era comumente chamado de Contagem: uma espécie de posto fiscal que contava gados e outras mercadorias e recolhia os impostos devidos. Esse posto era chamado de São João das Três Barras e a região ficou conhecida como Região da Contagem. Para os mais íntimos, Chapada da Contagem.

Conclusão

Do ponto de vista da exploração, não há conclusão. Porque há sempre possibilidades. A exploração que Cruls, Saint-Hilaire, Emanuel Pohl, Taunay e tantos outros há tempos iniciaram, nós estamos continuando. E estamos apenas na metade da trilha. Muitos lugares ainda nos esperam, muitas expedições nos aguardam! E por hoje, chega de história…

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